“Inter somnia insomnia”, de Mário Cabrita Gil

A arte é um fenómeno perene que se crê* exclusivamente humano. Perene porque – quando genuíno – é a única manifestação da criatividade que não caduca, que viabiliza sempre novas leituras e interpretações.

Que função tem a arte? É assunto tão complexo e vasto, que, mesmo que tal fosse possível, não caberia aqui abordar. Poder-se-á adiantar, em todo o caso, algo que aparenta obter um consenso generalizado: a arte, nas suas múltiplas manifestações, é uma forma do ser humano obter adequação ao mundo que o rodeia por via duma espécie de apropriação mágica ou, talvez, de sublimação. Através da arte o ser humano interioriza os fenómenos, a realidade objetiva e subjetiva que o envolve, converte-os em coisa sua, apropria-se deles. Depois, conforma-se, revolta-se, utiliza a arte como mimetismo social ou tranquilizante, converte-a em signo de status, forma de identificação. Mas tudo isso é já questão do foro sociológico, político ou psicológico. Já pouco importa.

Os autorretratos que Mário Cabrita Gil intitulou de “inter somnia insomnia”, que estão agora em exposição**, sugeriram a presente reflexão. Que leva alguém a fotografar-se, e depois a manipular as fotos produzidas, e depois ainda a reproduzi-las em grandes dimensões, depois de ter sido submetido a um exame médico destinado a detetar anomalias no sono?

A hipótese que defendo é que MCG quis, antes de mais, livrar-se dum incómodo, assimilando-o. Primeiro talvez, trivializando-o, remetendo-o para as gavetas duma memória seletiva, treinada, que quase todos os fotógrafos cultivam. Mas logo assumindo-a, dando-lhe um relevo que à partida não merecia ou que o artista não lhe queria atribuir. Foi por isso necessário transformar a memória-foto em memória-objeto, ou, melhor dizendo, em objeto-arte. É assim que a foto original se transmuta submetida a uma máscara obsessiva de padrões construídos a partir da própria imagem. Redundância óbvia – uma característica típica de toda a arte -, levada a um extremo que “anula” a foto original com o recurso… à própria foto. Sublimação pura.

Os quadros – acho melhor assim chamar-lhes – que Mário Cabrita Gil apresenta nesta exposição, são vários, mas não muitos. Em rigor poderiam ser apenas um. Fazem lembrar o poema de Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.

Um só quadro ficaria sempre no meio do caminho, inevitavelmente, mas vários quadros reforçarão ainda mais esta ideia. A ideia de que é preciso olhar, assumir o que se vê, com coragem, com atrevimento, energicamente. Esta é a lição da “inter somnia insomnia” de MCG. Vão ver.

Daniel D. Dias

*Um hipotético alienígena que divagasse uma primeira vez pelo nosso planeta, saberia distinguir, na sua determinação voluntária e inteligível, estruturas criadas por humanos ou criadas por abelhas, a diferença entre sonoridades harmoniosas de certos animais e de seres humanos, por exemplo? Daí a dúvida.

** “inter somnia insomnia” pode ser visitada até ao dia 15 de novembro de 2014, dias úteis das 17 às 20 horas, no
Campo Grande, nº 28, 2º andar C , em Lisboa

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